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A RAPOSA QUE SABIA DEMAIS – Um Conto Laços de Aço e Sombras, por Rafael Silva

CAP: 1 – De fato, estagiário nem é gente! (ainda mais uma raposa)

Pela primeira em muito tempo, Inari entrava em um banco e não iria roubá-lo… ou pelo menos até que nada não fosse dito ao contrário.
– Nem pense nisso, Srta. Gutierrez. – Falou o padre Lúcio, incisivo.
Ele caminhava em perfeita sincronia ao lado da kitsune; com cada passo seu seguindo com precisão o dela.
– Como sabe o que estou pensando?
– Não preciso ser um Mago Mentalista para saber o que está pensando. –
Retrucou o padre – Eu li seu histórico. É impressionante o fato de como conseguiu ser banida de cada mísero banco de todo o Condado de Los Angeles.
A dupla cruzou com um grupo de Magos e Bruxos indo no rumo da saída do banco puxando um saco de ração colossal. Ainda que o estivessem levando por meio de levitação, deveria estar exigindo um senhor esforço pelo tamanho e peso.
– Percebo uma admiração em suas palavras, padre? – Ironizou Inari.
– Tão admiradas quanto repreensivas, Srta. Gutierrez.
Inari deu de ombros.
– Fui contratada para um trabalho, apenas fiz o que me foi requerido.
Lúcio estalou a língua assim que passaram por um rol de detectores de metais – que disfarçavam detectores de itens mágicos ou feitiços ou
encantamentos ativos perigosos; além da dupla de guardas lobisomens, mas que para a visão de todos não passavam de homens comuns armados – e dirigiu um severo olhar para Inari.
– Você irá trabalhar agora como parte dos M.E.N.T.I.R.O.S.O.S, Srta. Gutierrez. Tal tipo de comportamento não será tolerado em nossas fileiras. – Explanou o padre, cujo rosto moreno já demonstrava traços de vermelho – Nossa missão é pelo bem geral da população, não pelos interesses de um particular.
– E se a situação exigir?
– Que roubemos o banco? – Padre Lúcio soltou uma risada irônica – No dia que essa organização precisar forjar um simples roubo de banco para esconder alguma coisa, será o dia em que me aposentarei.
– Ué, e em 2005? Com o roubo em Fortaleza? Não foram vocês?
– Claro que não. O que fizemos foi inventar que dinheiro havia sido roubado para esconder que na verdade tinha sido uma perigosa relíquia amaldiçoada.
– Nem São Paulo em 2011?
– Mesma coisa.
– 2019, Alemanha? 2013, em Cannes?
O padre parou de forma súbita, Inari parando junto com ele. As caudas se agitaram com a súbita virada do padre na direção da kitsune.
– Srta. Gutierrez, somente aceitei seu ingresso entre as fileiras desta prestigiada organização, pois além de ter sido um pedido pessoal de uma querida amiga, sua mãe; e em razão de ter recebido expressas garantias que iria seguir nossas regras. Ou devo esperar que algo como o que aconteceu em Los Angeles se repita aqui?
O brilho nos olhos heterocrômicos de Inari desapareceu com o mero escutar daquelas palavras.
Sim, desde o começo sabia que havia sido graças a mãe que havia conseguido aquele emprego na filial de São Paulo dos M.E.N.T.I.R.O.S.O.S sob o compromisso de Inari que aquilo seria um recomeço. Todavia, ainda tinha a singela e inocente esperança que a mãe não teria contado sobre os eventos de Los Angeles que fizeram a kitsune fugir de lá com o rabo entre as pernas.
– Não… não irá se repetir. – Respondeu a kitsune, cabisbaixa. Até suas orelhas e caudas haviam caído, acompanhando seu sentimento de abatida.
O padre não parecia convencido.
– Por mais que palavras sejam boas de escutar, no fim do dia valem tanto quanto o canto de uma sereia. – Disse ele, voltando a andar. Inari o acompanhou. – O que importa acima de tudo são suas ações. Quer se provar digna? Cumpra com o trabalho e siga as regras.
No fim do corredor havia um elevador.

Inari observou como o padre desdobrou a forma de sua mão, tornando-a um exemplar mais longo e cinzento; os dedos agora mais pareciam pequenas adagas serrilhadas. O homem ser capaz de realizar uma metamorfose tão isolada indicava o quão experiente e habilidoso ele era.
Com um dos dedos/garras, o padre apertou no botão para chamar o elevador. Da tecla partiram várias linhas roxas que atravessaram toda a porta metálica.
“Uma chave de portal!”, pensou Inari.
Logo a porta se abriu, revelando o elevador.
Aparentava ser como qualquer outra caixa metálica que ia de um ponto a outro dos prédios. Contudo, logo que o padre Lúcio escolheu o andar, o elevador fez tudo menos subir. Como um trem bala, objeto retangular se moveu para a esquerda, depois para baixo, esquerda novamente, então deu ré…
Houve um momento que Inari simplesmente não conseguiu mais acompanhar o ritmo direcional do elevador. A fêmea simplesmente se agarrou com a caixa de seu violino junto a uma das barras de proteção e começou a rezar para que aquilo acabasse logo.
A kitsune ficou bestializada ao ver pelo espelho como as mudanças de direção cada vez mais bruscas do elevador em nada afetavam o padre Lúcio. E ficava ainda mais impressionada por ele não estar fazendo uso de nenhum tipo de artefato, feitiço ou encantamento de estabilidade (graças a sua herança kitsune, Inari possuía a habilidade para “farejar” a magia próxima de si, até mesmo através de disfarces).
– Ainda vai demorar para chegarmos na sede?!
Pelo reflexo, o clérigo apenas lhe dirigiu um olhar de canto, sem aparentes pretensões de responder a pergunta, e voltou a ignorá-la.
Inari bufou, zangada.
“Bruto! Se pelo menos pudesse tocar apenas uma única nota do meu violino…”.
Ainda demorou um pouco entre curvas, subidas e decidas até o elevador enfim parar de uma vez por todas.
Quando a porta abriu, o padre Lúcio saiu de forma tão tranquila quanto entrara. Já Inari… bem, ela precisou de um longo minuto ou dois até seus sentidos se normalizarem e ao menos conseguir se manter de pé por si só.
Inari soltou um grito estridente quando viu sua aparência.
Além de seu cabelo estar mais parecendo uma juba de leão, todos os pelos de suas orelhas e caudas vinham arrepiados, quase praticamente dobrando seu volume.
“Que horror! Eu tô parecendo um piloto de Fórmula 1 depois de duas horas de corrida! Que Afrodite tenha pena de mim…”
– Srta. Gutierrez! A não ser que queira desfrutar de outra viagem pelo elevador que você tanto adorou, melhor sair logo daí.
De forma muito desajeitada e apressada, Inari disparou para fora do elevador agarrada junto a caixa do violino. Por pouco a ponta de suas caudas não foram pegas quando a porta metálica se fechou.
Inari suspirou aliviada de ter fugido daquele elevador amaldiçoado.
“Que primeiro dia de trabalho maravilhoso… o que será que vai acabar me
matando primeiro? A primeira missão ou o caminho até minha sala?”.
A fêmea então viu algo deveras chamativo o qual não acreditou a primeira vista.
Numa tentativa de retomar sua digna compostura, Inari se aproximou da amurada de mármore deveras trabalhada com toda a graciosidade de pernas e caudas treinadas para dançar balé.
A visão que teve foi de tirar o fôlego.
Seus olhos heterocrômicos brilharam e o queixo caiu diante de uma
extensa galeria arquitetônica subterrânea que se estendia por centenas de metros a fio. Todo o modelo da construção era uma mistura de estilos, entre o colonial português a delicadeza grega e itálico-renascentista. O teto simulava o céu do dia, com a luz do sol brilhando sobre o mármore bem preservado.
A kitsune podia imaginar perfeitamente toda aquela vista transformada em um de seus quadros de aquarela. Já vinha de imediato em sua mente quais cores poderia usar, os traços, os detalhes… ficaria lindo.
Se inclinando mais a frente, Inari viu dezenas de indivíduos das mais variadas espécies correndo de um lado para o outro, cada um mais agoniado que o outro para resolver crises dos mais diversos tamanhos por todo o continente.
Inari conviveu no meio daquele caos organizado por mais de 15 anos. Na verdade, desde quando não passava de um feto, já acompanhava os pais viajando por todos os cantos do mundo tendo que esconder todas as confusões deixadas para trás pela magia.
Ver aquilo… realmente era como estar de volta em casa.
– Srta. Gutierrez! – Gritou o padre Lúcio. Certeza que já estava a beira de perder o pouquinho ainda lhe restava de paciência – Trate de me acompanhar, agora!
Inari aproximou-se do padre saltitando, as três caudas tão castanhas quanto seu cabelo e caixa do violino balançando junto ao movimento.
– E para onde estamos indo, afinal de contas? – Perguntou Inari com sua mais descarada e falsa inocência.
– Ora, lhe apresentar a sua equipe, é claro. – Disse o padre, aos resmungos.

II
Inari piscou várias vezes, incrédula.
“Ok, ok, ok. Eu preciso de um segundo e de uma bebida muito forte. Não estou bêbada o suficiente para crê no que vejo!”.
A kitsune estava de orelhas em pé, bestificada com o quarteto diante dela.
“Eu saí da renascença e vim parar num digno show de horrores…”.
Um macho curupira com cabelo em chamas vinha sendo perseguido por um fantasma que trajava os mais bufantes e chamativos trajes do século XVIII; e um lobo gigante brincava dentro de uma bola de hamster tão grande quanto a si mesmo; e um homem de cabelo roxo espetado lia um livro, estando de cabeça para baixo, com a dobra das pernas apoiada numa barra de ferro na lateral esquerda da sala. Inari lambeu os lábios, com as presas a mostra, admirada com o abdômen escultural dele.
Padre Lúcio desceu os três degraus para a sala de reunião e bateu uma única palma.
Imediatamente todo aquele disfuncional quarteto voltou a atenção para o padre.
– Esquadrão Limoeiro, em posição!
A ordem do eclesiástico foi prontamente respondida. Inari ficou surpresa quando o lobo gigante se transformou, dando lugar a
uma mulher negra franzina, de cabelo e olhos cinzentos. O macacão que usava deveria ser do tipo com feitiços tecidos que não o permitiam destruir no ato da transformação. Ela foi a primeira a se pôr em posição de sentido, depois veio o curupira (cujo cabelo agora só esfumaçava), o fantasma então (que deu um peteleco no curupira), e por último veio o homem de cabelo roxo (agora vestido com uma camisa, para a decepção de Inari).
– Descansar. – Disse o padre – Como informei no início da semana, o Esquadrão Limoeiro receberia um novo membro. E aqui está ela. Inari, venha aqui e se apresente.
A kitsune se colocou ao lado do padre, se forçando a esboçar o seu mais cordial sorriso. Colocou no chão o estojo do violino e fez uma floreada reverência.
– Prazer em conhecê-los. Me chamo Inari Gutierrez, mas podem me chamar apenas de Inari. Espero que trabalhemos bem juntos.
Com exceção do homem de cabelo roxo, os outros três começaram a cochichar entre si. Inari já esperava por isso, não poderia esperar uma reação diferente quando se apresentava a filha da Chefe de Operações Continental dos M.E.N.T.I.R.O.S.O.S do Brasil.
O padre Lúcio limpou a garganta como forma de chamar a atenção do distraído esquadrão.
– A Srta. Gutierrez até não muito tempo atrás trabalhava no setor privado, agora foi admitida como parte de nossa organização. Como já devem ter ligado os pontos, pouco importa de quem Inari é filha. Nada de tratamento especiais, entenderam? Sr. Valência, um passo a frente.
Quem avançou foi o homem por quem Inari quase estava babando um instante atrás.
– Este é o Bruxo Douglas Valência, ele é o líder do Esquadrão Limoeiro. O belo homem fez um educado aceno com a cabeça para Inari.
– Bem-vinda a equipe, Inari. Deixe-me lhe introduzir aos outros membros: o curupira sem alguns dentes é Paulo, o fantasma influencer é Howard, e por último temos Alicia, a Maga/lobisomem.
A pelugem das orelhas e das caudas de Inari arrepiaram. Tal “aviso” se traduziu na súbita aparição do fantasma Howard ao seu lado. Inari ainda ficou mais surpresa quando o fantasma fez uma carta e tirou uma selfie com um celular flutuante.
“Estranhos ao máximo…”.
– E o que é você? – Perguntou a Maga lobisomem, fuzilando Inari – Ou tudo que tem é um rostinho bonito, um sobrenome famoso e algumas caudas para abanar?
Inari estalou a língua.
“Que maravilhosa primeira impressão…. também já não gostei de você. Respire Inari. Nada de socar outros funcionários no primeiro dia de trabalho. Quem sabe no segundo”.
Inari respirou fundo, acalmando os nervos.
– Minha aparência é de uma kitsune devido a linhagem do meu pai, já minha magia seguiu a herança de minha mãe humana. Sou uma Feiticeira cujo artefato é um violino feito de um pedaço de madeira que eu mesma trouxe do Coração da Floresta Negra. Contudo… não quer dizer que eu não sabia como invocar um espírito ou dois, ou até convocar um pouco de fogo celestial.
Paulo, o curupira, assobiou, bastando para jogar mais lenha na fogueira.
Os músculos do rosto de Alicia se contraíram. Inari não conseguia discernir se aquilo representava uma raiva guardada ou se contendo uma irônica risada.
– Pois bem – o padre Lúcio enfim decidiu retomar as rédeas do diálogo –
com as devidas apresentações feitas, já tenho uma missão para o esquadrão. E a Srta. Gutierrez já irá com vocês.
Aquilo pegou todos de surpresa, inclusive Inari. Até onde sabia, novos membros dos M.E.N.T.I.R.O.S.O.S eram obrigados a cumprir um estágio obrigatório de seis meses em algum escritório da organização antes de serem enviados para o campo.
– Eu sei, isso vai contra o regulamento – completou Lúcio logo em seguida -, mas no momento temos pouco pessoal e muito ao que fazer. Além de que venho a crer que será a missão perfeita para o tipo de magia de Inari.
– E do que se trata, padre? – Perguntou Douglas.
– Durante a madrugada, na cidade de Parnaíba, no litoral do Piauí, houve uma luta entre gangues que resultou na soltura de inúmeras criaturas presas ilegalmente. Tais criaturas agora infestam a cidade e as redondezas. A filial do estado está muito ocupada lidando com a aparição de um demônio superior em Picos, então pediram que lidássemos com o caso de Parnaíba. Já avisei a Diretora
do Magistério local da ida de vocês. O avião parte em uma hora. Boa sorte. – O padre voltou-se para Inari – Nada de problemas hoje, Srta. Gutierrez.
Inari limitou-se a erguer as caudas e exibir as presas. A superioridade aparente que a kitsune buscava apenas arrancou um falso riso do padre.

NOME: Inari Heloísa Meleys Brandão Gutierrez;
Nascimento – 12/09/1997(22 anos), La Plata;
Raça – meia humana / meia kitsune
Personalidade – inteligente, sarcástica, graciosa e cheia de floreios;
Classe mágica – Feiticeira (artefato consiste de um violino da madeira da Floresta
Negra);
Habilidades mágicas – Magia espiritual / empática ligada a música
Local de treinamento – Academia de Ciências Arcanas Avançadas do Rio da Prata
– ACAARP // treinada pessoalmente pelos pais, dois operadores renomados dos
M.E.N.T.I.R.O.S.O.S;
Filiação – Conclave do Brasil // Magistério de Los Angeles (temporariamente);
Ocupação – Gerenciadora de crises independente, atuava em Los Angeles até
recentemente.
Status de relacionamento – Solteira
Missões – Sem registro
Passatempos – pintar aquarelas, jogar video-games, dançar, cosplays e churrasco;
O que detesta – vegetais em geral, pessoas que não gostam de musicais ou de
animais;
Relatório apresentado ao Padre Lúcio Fringilo, Chefe da filial dos
M.E.N.T.I.R.O.S.O.S de São Paulo-SP, Brasil.

Sobre o Autor

Rafael

Rafael Silva iniciou sua obsessão pela literatura ainda criança, logo compreendendo que apenas um mundo não lhe era o bastante. E apenas na Fantasia e na Ficção-Científica encontrou os mil e um mundos que tanto ansiava por explorar.
Entre a faculdade de direito, trabalho e as hilárias crises de seus amigos, em sua cidade no litoral do Piauí, encontra todo o necessário para tornar cada uma de suas histórias uma digna carta de amor para todos aqueles que contribuíram para que chegasse aonde está.
Quando não está sonhando com maneiras de matar seus personagens, pode ser encontrado procurando livros em promoção ou tentando convencer alguém a assistir Hamilton.

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