Crônicas

As quatro mortes de tia Socorro, por Rômulo Maia

Tia Socorro e eu na sua casa do Mercador. Foto: Arquivo pessoal

Por Rômulo Maia

“Deixa eu cheirar a cabeça!”. Aquilo não era um pedido; era uma convocação. Encostava, afagava meus cabelos, cafungava profundo e, então, anunciava com uma expressão exagerada de espanto: “Puura jumento!”.

Fosse no terreiro do Mercador, num esbarrar na feira, na cozinha aqui de casa e até mesmo quando ela ficou presa a uma cama: esse era o ritual de boas vindas de Tia Socorro comigo. Seu jeito próprio de me recepcionar e demonstrar carinho.
Quando eu aparecia na sua porta após dias ausente, ela saudava de longe: “Ah! Apareceu, cachorro véi!?”. Se as palavras não eram bonitas, o sorriso que as acompanhava dizia tudo.
Foi quem primeiro me deu um presente de casamento – três anos antes de Mayara e eu planejarmos casar. Quando noivamos, fomos até ela mostrar as alianças. Bem séria, olhou pra noiva e aconselhou: “Ainda dá tempo de arrumar outro.” E apontando pra mim com os beiços, avisou: “Esse cachorro aí num presta pra nada.” Depois, juntou nossas mãos, beijou os dois anéis e encomendou nossa união a uma ruma de santos.
O código que traduzia seus sentimentos, definitivamente, não estava na palavra literal. Ela era assim mesmo, meio ao avesso; pouco convencional no lidar com os outros.
Ao lado de sua cama, pra animar as visitas casuais, inventei histórias absurdas. Muitas! E mesmo incrédula, Tia Socorro espalhou todas via celular. “Ô Luís, é verdade que você subiu as escadas do Padre Ciçu de joelhos e comendo uma melancia?”
Também consolei seu choro, dei bronca, fumei da sua parronca, fiz massagem, ouvi fofocas e lamentações.
Digo que Tia Socorro morreu quatro vezes: a primeira, junto com Tio Francisco, há 17 anos. Ao enviuvar, perdeu o companheiro da vida, fonte permanente de cuidado, carinho e veneração. Quando precisou deixar o Mercador, ela morreu pela segunda vez. Ficaram na fazenda da família os trecos, cacarecos e as lembranças de uma rotina movimentada e feliz. A terceira vez, foi quando o corpo cansou, as pernas fraquejaram e ela já não podia mais sair de casa sozinha. Aí passou a conviver com a presença permanente da ausência – indigna companheira. Há 11 dias Tia Socorro silenciou para a eternidade. Foi sua quarta e derradeira morte.
Eu estava num ônibus, a caminho de Pio IX, quando a notícia me baleou. Cheguei para a despedida.
Tivesse a chance de uma última pergunta, juro que indagaria se minha cabeça cheira mesmo a jumento. Mas até imagino a resposta:
“Só o puro!”

About the author

romulodocantinho

Rômulo Maia de Alencar nasceu em Pio IX (PI)  em 08 de junho de 1985. É o filho do meio da professora Joicileide Melo (Leleda) e do dentista Luís Pereira. Neto de Maria Teresa e Chico Arrais, Bilinha e João Pereira.

Passou a infância e início da adolescência em Pio IX, onde cresceu desfrutando toda a liberdade e segurança que uma cidadezinha de interior oferece aos seus viventes.

Esse período marca fortemente a formação dos seus gostos, referências e os traços da sua personalidade.

Correr pelas calçadas, jogar bola, banhar de chuva, barragem e riacho, jogar bila, chupar imbu, andar de bicicleta e passar o final de semana no Cantinho (fazenda da família) estão entre as melhores lembranças dessa fase.

Aos 13 anos de idade – em 1999 – foi morar na capital Teresina, onde concluiu o ensino fundamental, médio e as graduações em Comunicação Social (Jornalismo) e Odontologia. Trabalhou em assessorias de comunicação, nos sites de notícia Portal AZ e AcessePiauí e no jornal e portal O Dia. Por 10 anos manteve um blog de humor.

Em 2017, concretizou o sonho de voltar para junto das suas raízes, retornando à Pio IX.

Rômulo diz ser um apreciador das miudezas, pois acredita que é nos pequenos acontecimentos e detalhes que está a grandeza e o sentido de estar vivo. Isso está expresso no que escreve, nas fotografias que faz por lazer e nas suas relações interpessoais.

Não dispensa um bom café. É viciado em cheiro de chuva e adora ouvir um “causo” bem contado.

Pegou gosto pela rima e pela escrita ao ver o pai e o avô João compondo e declamando na sala de casa.

Começou a brincar de rimar no começo da adolescência. Até hoje escreve sem compromisso com rebuscamento ou repercussão. Para ele,  compor é uma forma de expressar sentimentos, sensações e registrar acontecimentos. É onde melhor expõe sua visão de mundo.

É por isso que, inspirado no avô João Pereira, não ousa dizer que é poeta ou escritor: apenas rima e rabisca por diversão.

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