Flores roxas por todos os lados, caixão fechado. Ninguém lembrava bem os traços que tivera ou o som da voz, Alice sumira muito antes de morrer, ou morrera porque sumira, não se sabia ao certo. Voltou muito bem lacrada na madeira lustrada e cheirosa de portinhola cerrada, com dizeres latinos nos pegadores dourados. Encomendara ela mesma o funeral no interior onde nascera, havia de ser numa tarde nublada, estando convidados todos que mais ou menos a conheceram, mas sobretudo os que desejava desconhecer, pois que morrer primeiro era a afronta última contra quem ficava. Escolheu a dedo os biscoitos a serem servidos e também o chá ou o suco— a depender da época do ano, as frutas já poderiam ter desfeito as flores brancas, de modo que se da laranja não pudesse ter o perfume, ao menos o gosto teria. Reservara a igreja onde casou-se com o primeiro marido muitos anos antes e também onde o viu casar-se com sua segunda esposa no mesmo dia em que ela fugiu dali pra nunca mais.
Imaginava o burburinho de semi-lembranças e histórias confusas subindo em eco até o teto alto da igreja, ou as culpas e remorsos nem sequer sussurrados, esses a ecoar entre cada peito magro e coluna curva. Imaginava a saudade e a pena pesando os olhos semi-cerrados, semi-cegos, há tanto incapazes de chorar. E mais do que imaginar, quase podia ver os muito moços indo até o caixão segurando seus velhos, largando-os sobre bancos muito duros e indo fumar atrás da igreja, ilesos ao peso e à leveza de qualquer ritual de vida ou de morte. Imaginava também as mil perguntas que ninguém sabia responder há tanto. Como viveu? Morreu de que? Dali há pouco já haveriam suposições e depois dessas quase certezas. Deve ter sofrido, melhor assim que descansa. E depois dessas, quase pedidos. Deus queira que eu também não sofra muito.
Sobre muitos outros Abreu, Alice foi guardada como se guardam cartas em gavetas, nunca mais lidas, nunca mais lembradas, o nome oculto sobre suporte fixo, indelével mas ignorável. Sob o anúncio cinzento de tempestade todos partiram mais ensimesmados do que propriamente tristes, deixando sozinha e para trás e para baixo, sete palmos abaixo, aquela a quem nunca de fato fizeram companhia. Um caixão é sempre uma caixa de Pandora ao avesso, fechando e enterrando consigo tragédias de vidas inteiras. Seus sessenta ininterruptos anos de diários deram conta de pesar tanto quanto o corpo que sobreviveu a tempo e intempéries, de conter os males do mundo e os de Alice, que preferiu não ir ao próprio funeral.
Viviane Amorim (Escritora)