Um barulho horrível e arrepiante BUMMM, um seringueiro havia caído de mal jeito de uma altura de 15 metros enquanto recolhia o precioso látex da gigante Hevea brasiliensis, leite da vida e da ilusão.
Com tambores, telefone de índio, batendo com as nozes de castanha do Pará no tronco das gigantescas Sumaúmas, sinais de fumaça, e rádio cipó, conseguiram chamar de longe o respeitado pajé todo enrugado, parecendo um maracujá, com olhos fundos astutos e bem vivos. Ele pertence a tribo dos Ticunas, uma isolada comunidade indígena que vive do lado brasileiro da fronteira entre o Brasil e a Colômbia, lugar belíssimo paradisíaco, verde, azul, ali a sensação é de incrível paz infinita, e muito distante, segundo os mitos os Ticunas são originários do igarapé Eware, que fica nas nascentes do igarapé Tonatú . Lá sim era que tinham cobras de todos os tamanhos, algumas enormes, até os incrédulos, quando entram em contato com as florestas tropicais encantadas e misteriosas, passam a acreditar em tudo. O tempo ali não passa e não é medido em horas, sempre na base do se acalme, não existe pressa para nada nesta vida, só para escapar da morte. Finalmente chegou o Pajé disfarçado de feiticeiro, como era de se esperar não falava uma única palavra de português e estava visitando algumas aldeias da região. Quando viu o seringueiro estirado na rede, fez todas as pajelanças, invocou os espíritos do fundo do Rio do Além, exorcizou as entidades do bem e do mal da floresta encharcada, no Paraíso tropical, invocou as divindades de todos os tipos que vem buscar os homens quando chega a sua hora, entoou cânticos, fez danças do fogo, fumaças de plantas aromáticas, preparou beberagens com vários tipos de ervas medicinais e mágicas que encontrou ali no bosque e realizou todos os ritos que aprendeu com seus ancestrais para ressuscitar o pobre homem, porém sem sucesso. Agora já era tarde o mesmo estava morto. A comunidade de seringueiros da região deveria se conformar logo com a tristeza da notícia. Mas ali também corria uma misteriosa esperança. Ele havia deixado sua mulher viúva, linda cabocla amazônica, morena, cabelos pretos como a noite sem luar, lisos e perfumados, olhos de feitiço de cobra Jiboia, sedutores, gateados, amarelados e amendoados, ancas largas e férteis, que rebolavam sensualmente quando caminhava, instigando os homens presentes ao funeral, boca vermelha, carnuda e luzente, pois seus dentes eram encapados de ouro. Esta era uma prática muito comum na época utilizada por protéticos curiosos e que aumentavam o valor do dote feminino. Sabia costurar, fazia objetos doméstico trançando cipó e Tucum, e também sabia ler, escrever, fazer contas, cozinhava muito bem os banquetes nativos, ótima parideira e com três pequenos filhos homens, eram felizes quando o marido estava vivo ao todo somavam várias bocas para comer e 50 dedos em cinco pares de mãos para trabalhar. Havia um número muito grande de homens de várias espécies e raças que circulavam ali por tantos motivos, que até Deus duvida, eram muito fortes e másculos, pois isolados, só os mais preparados, prudentes e inteligentes conseguiam sobreviver naquele inferno verde, eram forçados a se livrar das feras, índios caceteiros, plantas e formigas carnívoras, dermatoses de todos os tipos contraídas de fungos transmitidos por plantas nativas das florestas tropicais e mais ainda da febre terçã, que se propagava facilmente entre eles já que não possuíam mosquiteiros ou repelentes muito menos quinino para os salvar. Tinha tanto paludismo, que até os macacos picados pela fêmea do mosquito anopheles também caiam das árvores com febre, os que não morriam logo, corriam para o rio e tomavam banho na água fria que também era fatal. Lugar bom para se esconder sempre foi a mata, entre estes homens, como filhos do trovão, benignos e malignos, numeravam remanescentes das expedições do Marechal Rondon, alguns ex- escravos negros que fugiram dos quilombos, pescadores dos peixes gigantes como o Pirarucu e peixes minusculos ornamentais fluorescentes, garimpeiros, madeireiros, grileiros, devedores da justiça, homens guerreiros e valentes com coragem de mamar em onça e deixar os filhotinhos com fome, assassinos, pistoleiros, matadores de aluguel, aventureiros, corajosos e curiosos pelos mistérios do eldorado selvagem amazônico, visionários, adivinhos, alquimistas a procura do elixir da beleza, juventude e vida eterna na terra, voluntários para tudo, loucos que chegavam e outros que facilmente ficavam, profetas, sonhadores, homossexuais, catadores de castanhas do Pará, outras frutas exóticas, cogumelos comestíveis e alucinógenos, e principalmente ervas medicinais, contrabandistas de toda sorte, místicos andarilhos errantes, eremitas devotos de Santo Onofre, botânicos alemães, ingleses, dinamarqueses, japoneses, guardas da saúde para prender os hansenianos que fugiam dos Hospitais Colônias, eles eram confinados compulsoriamente nestes locais de forma arbitrária, e quando podiam escapavam com as poucas forças que tinham , missionários perdidos, que depois de tanta realidade intensa selvagem abandonaram a fé e tornaram-se ateus, caçadores de peles de animais silvestres exóticos e em extinção, mamelucos, protéticos curiosos, médicos verdadeiros e charlatões, curandeiros, travestis, caravanas perdidas de tropeiros e bandeirantes vindos do sul do país, topógrafos, mágicos e encantadores de serpentes, céticos que se tornavam fervorosos fiéis a Cristo depois da experiência ali, caçadores de pedras preciosas, eles se respeitavam muito e eram bem amiguinhos entre si, outros chegados em 1877 com a seca do nordeste, esses haviam virado heróis são os soldados da borracha a maioria nordestinos, principalmente, paraibanos, alagoanos, pernambucanos, cearenses e piauienses fugindo da caatinga da vida árida e desértica, quando tinham as memoráveis secas implacáveis, e foram iludidos com o Eldorado Aquático, muitos lutaram com a Bolívia para que o Acre se tornasse brasileiro. Como poucos deles haviam vindo com a família, encontrar uma mulher lá era como procurar uma agulha no palheiro. Uma vez a cada cinco anos chegava um grande navio através do Rio das Almas que trazia nativas disfarçadas de bailarinas francesas do Can-Can, procedentes de Manaus, algumas eram prostitutas outras não e também eram aves raras naquele misterioso paraíso tropical. Os seringueiros conheciam as estradas de seringa, como as veias dos seus corpos. Decidiram que o funeral deveria durar alguns dias na casa dele que ficava próxima à beira do Rio das Almas, o local não era grande, tinha a casa mãe com varanda de todos os lados e três quartos dentro, um destes compartimentos servia de cozinha. Eles estavam esperando mais amigos para a despedida, e para que mesmo os retardatários pudessem vê-lo, resolveram defumar o cadáver como faziam com a pela da borracha. A família morava nesta casa faziam 4 anos ela era toda construída com Paxiúba tudo amarrado, não possuíam pregos. Esta palmeira é muito apreciada e peculiar da região, sua primeira raiz cresce até certo ponto e para, mas o resto da planta continua a crescer, com isso o estipe produz raízes aéreas que vão até o chão e parecem escoras, formando um complexo de grutas, que para os pequenos animais selvagens serve de abrigo, os seringueiros também construíam o corpo das casas com sua madeira, como palafitas, e também o assoalho, e suas folhas são utilizadas para cobrir a casa, o palmito é comestível, se faz vassoura, é uma planta de mil e uma utilidades. Em baixo da casa eles faziam tudo gradeado e com uma porta e moravam os animais domésticos, até a gata preta chamada Agripina chegou ali de navio trazida por um biólogo italiano e ficou lá, chorava felinamente a perda do seu dono. Próximo a casa havia uma pequena jaula feita de resistentes cipós, com uma pequena Jaguatirica, e outra com 3 filhotes de Gato Maracajá encontrados na mata, perdidos de suas mães, eles parecem onças em miniatura, alguns gambás soltos, jaçanãs, papagaios e periquitos que sabiam falar e rezar, lógico eles produziam uma forte inhaca , mas bem tolerada por todos habituados com todas as surpresas que estes locais apresentam. Quando o Rio das Almas enchia os animais eram trazidos para as varandas da casa, e todos os objetos que estavam embaixo deveriam ser atrepados, pois as grandes águas da alagação do rio que acontecem a cada seis meses de chuvas torrenciais cobria tudo, lógico nos anos de inverno forte. A maior preocupação é sempre com as cobras grandes que estão constantemente de barriga vazia e podem aparecer a qualquer momento, dando o inesperado bote. Também ao lado havia uma casinha de defumação para preparar os rolos de borracha com a defumação, onde o marido havia trabalhado em vida e agora era vítima da mesma. Ao redor da casa alumiaram tudo com tochas de fogo para espantar as feras dos seus ataques noturnos, também sinalizar e facilitar a chegada de outras pessoas para a última despedida ao caro amigo. Tudo era iluminado com velas de cera de Andiroba e lamparinas alimentadas com óleo de Copaíba e querosene comprado a retalho no Barracão dos Coronéis. Outros homens queriam fumar cigarros de palha e mascar tabaco, e espantar os meruins, mucuins, formigas e carapanãs. Alguns foram para fora acender fogueiras de erva cidreira e assim deixar distantes os insetos rastejantes e voadores noturnos, queriam tomar Ayahuasca, para ter visões, sonhar e esquecer a morte do amigo e não pensar nas suas. Beber cachaça bebida mágica que serve para tudo até parto que não falta sob hipótese alguma nestes locais e queriam ficar menos tristes, e após algumas descontraídas doses, tomar café para acordar, e beber o aluá feito de abacaxi gigante, e Bacaba que parece a seiva branca do açaí, seu vinho é feito de uma polpa muito nutriente, vinho de murici, doce de buriti, pupunha cozida e tucumã no dente, chupar Ingá, comer Uxi, suco de Taperebá. Comiam peixe de água doce salgado e seco assado na brasa, carne de macaco guisado, carne de onça frita, cuscuz feito de milho seco ralado a mão, e misturado com castanha do Pará, molhado no seu leite, peixe Mapará, Curimatã e Mandim cozido com chicória, Pirarucu frito e cozido no leite da castanha, caldo de Tucunaré com mandioca cozida, casquinhas de muçuã com farofa. Haviam muitas redes penduradas nos arredores da casa para poder hospedar todos que chegavam para a fúnebre e festiva ocasião. Fizeram uma cruz de seringueira, e encaparam com couro de cobra venenosa e pantera negra, fincaram próximo da casa de defumação pra espantar os maus espíritos. Resolveram pedir a um dos presentes que haviam chegado para tirar o Terço Católico e ajudar o defunto na passagem desta vida para uma melhor a eterna. Estavam presentes neste ritual, homens com o famoso corpo fechado, pois o próprio sangue e suor era tão forte e venenoso que até as serpentes e todos os tipos de insetos que os picavam ou mordiam, caiam mortinhos na hora, espantavam tudo com sua presença, até gente ruim, cobras de duas pernas e maus pensamentos, outros com olhar de seca pimenteira que metiam medo até nas onças pintadas que circulavam na área, apenas os avistavam saiam em rápida retirada esturrando de medo deles. Alguns desses disseram que não sabiam ler e que não tinham o livro de reza do rosário e encomendação do corpo. Padres ali só são vistos nesses locais na época da desobriga, às vezes aparecem a cada ano, para realizar missas, batizados, casamentos, extrema unção, e quando não tinha jeito, faziam exorcismo. Mas eles iriam improvisar a reza com um Terço de semente de Açaí como faziam quando estavam perdidos na mata, com medo das lendas da floresta, rezando e se achando, pois é sempre mais fácil se perder que se achar. Mesmo sendo duros na queda, choraram um pouco e após os ritos iniciais fizeram o sinal do Cruz Credo. Assim deu-se início ao estranho e surreal terço de despedida. Que começou assim: Pai nosso, três Ave Maria e o famoso Credo que espanta tudo de mal. Primeiro Mistério: Este terço é em intenção da alma do Sr. José, quando estava caindo da árvore gritou: – Vou para o beleléu, espero vocês lá, anjos me acudam. Que ele chegue logo no céu, e encontre com Santa Edwiges, para livrar suas dívidas do barracão do patrão, e também encontre os seus parentes sem se perder no caminho, que estavam com saudades e vão receber ele lá em cima com amor, para ficarem todos juntos eternamente. 10 Ave Maria cheia de graça, o senhor é convosco, bendita sois vóis entre as mulheres, bendito é o fruto do vosso ventre Jesus. Santa Maria mãe de Deus, rogai por ele o pecador e devedor, agora e na hora de sua morte amém. Segundo Mistério: Este mistério é para que ele fique tranquilo por lá onde chegou, e desapegue de tudo que gostava na terra, da casa, dos meninos, e principalmente de sua amada e preciosa mulher, agora desejada por tantos. Quem sabe encontrar uma anja no céu. E bem aventurado os honestos, os otários, os misericordiosos, e os menos pávulos. Livra-nos dos espertos e sanguinários. Mais 10 Ave Marias ao modo deles. Interessante é que no terceiro mistério apareceu uma velha parteira e benzedeira que disse ser preparada e competente para rezar Terço, principalmente de encomendação de alma, e que estava tudo errado naquela inacreditável ladainha, e gritou com muita raiva: – VALHA ME DEUS! Isto não é um terço, mas cantiga de bruxaria, pra arranjá muié. Pois quando chegava na Santa Maria, os pecadores eram eles os presentes e não a alma, e na hora da morte não era do defunto (pois já tinha morrido) mas dos presentes: – VAMOS MUDAR ISSO! Mas eles nem ligavam, brigaram um pouco animadamente e a pregação continuava. Terceiro Mistério: Este mistério é para consolar todos os parentes, amigos e inimigos conhecidos e não, com sua partida tão inesperada e inacreditável ao além, e ainda bem que nos deixou esta bela viúva para consolar e cuidar com estes três curumins, mais 10 Ave Marias. Quarto Mistério: Este mistério, vamos rezar por todos os presentes, e pedir que nos mandem mais mulheres, e muita alegria, e mais animadas festas ao seringal. 10 Ave Marias. Quinto Mistério: Este mistério, vamos rezar para que os anjos, e as entidades da floresta o recebam em um lindo jardim de seringueiras, lá o trabalho é feito com asas para atingir as altas arvores de seringa e será mais simples e menos perigoso e fatigoso, e que ele esqueça tudo que teve aqui de passagem na terra, principalmente a sua família. 10 Ave Maria. Concluindo assim mais este estranho e questionado rito de despedida. Depois desta reza braba, alguns dos presentes, os mais corajosos, que não tinham medo de nada, principalmente de alma penada, se afastaram um pouco para conversar, ficaram contando lendas amazônicas e naquela escuridão era o clima propício, de dar medo e arrepio até em enganoso Curupira. Dois homens caminharam um pouco e viram um tronco grosso e sentaram em cima, começaram a prosear, contar lorotas e cortar o fumo de rolo e fazer um cigarro de palha com um pequeno e afiado canivete, mas para a surpresa deles, começou a sair um líquido escarlate da macia árvore, apavorados descobriram que estavam sentados em cima de uma Cobra gigante, gritaram e deram uma carreira só, ela ficou com mais medo deles ainda e rastejou rapidamente com seu visco ajudada pelos musgos e pela umidade da mata, tchibum caiu dentro do Rio das Almas, saiu nadando rapidamente pois ali percebeu imediatamente que aqueles homens não eram de brincadeira e talvez mais perigosos que ela. De longe se avistavam olhos curiosos de macacos e seres humanos que de tão pobres estavam escondidos atrás de árvores ou protegidos com folhas gigantes encontradas no caminho, não conheciam ou possuíam dinheiro para comprar roupas quando os regatões vinham pelos Igarapés e rios para vender toda a sorte de catrevagens. Daqui a pouco, inesperadamente entrou na casa um homem correndo esbaforido e chegou até a viúva toda vestida de preto, mais linda e atraente do que nunca, rodeada de meninos, foi lá dar-lhe os pêsames e aproveitou para falar o seguinte: – D. Catira, eu sei que o seu marido ainda esta fresco de morte ai na rede de cipó onde será enterrado por nós, mas eu quero pedir com todo o arespeito a sua mão em casamento. Ela levantou o véu do seu belo e bronzeado rosto, através da cobiçada boca dourada, disse entre lágrimas e soluços: |
– Seu menino me adisculpe, ma eu já fui pedida em casamento por 7 cabras machos que chegaram nestes dias primeiro que vósmicê aqui no Seringal, e eu sendo uma mulhé séria e de vergonha, já me apalavrei com o primeiro.
Socorro Brasiliense (escritora)